Sobre a
humildade
Uma falsa humildade é grande
soberba, porque aspira à gloria [Santo Agostinho].
A humildade evita que a agarrem a compreendam. É
como um poço sem fundo, nunca mais acaba de tornar-se humilde. Há poucos
estudos dedicados a esta virtude; nesta investigação, além da Suma Teológica de
São Tomás de Aquino, na parte dedicada ao tema da humildade, servirmo-nos-emos
também do bom ensaio escrito, em 1974, pelo jesuíta François Varillon, L’umiltà
di Dio, que nos recorda o paradoxo dessa virtude que deve ser estudada com a
devida e humilde gradação:
Só Deus é
humilde. O homem não é, a não ser na medida que reconhece a sua impotência em
sê-lo. Aqui, deve-se avançar passo a passo. [...] Enquanto estivermos a caminho
na terra, a humildade, sempre procurada como necessária, deve ser considerada
um limite inacessível. [...] Só Deus, ao revelar-nos a nossa incapacidade de
sermos humildes, nos torna humildes. A vitória da humanidade só pode ser o seu
fracasso [François Varillon, L’umiltà di Dio].
Avançando passo a passo, atentos às voltas e
revoltas da humildade-enguia, vemos agora o que nos dizem as duas autoridades
máximas do pensamento cristão, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, sabendo
aliás como se sabe que Joseph Ratzinger foi e é um grande admirador do
primeiro, mas “passional” do que do segundo, considerado mais frio (neste
sentido, impressiona a confidencia de Bento XVI a Peter Seewald, no livro
entrevista luz do mundo, quando associa São Tomás de Aquino a Santo Agostinho e
São Boaventura, no circulo dos seus grandes e santos amigos, a quem se dirige
nas suas orações cotidianas.
Santo Agostinho fala de várias obras da humildade,
especialmente nos seus sermões, uma virtude que para ele, é paradoxal porque,
na humildade, a descida coincide com a subida e o abaixamento com a verdadeira
evolução, pelo que “o coração grande só pode encher-se na humildade: de fato,
só ela se orienta para o altíssimo” [De Civitate Dei XIV].
Para o Bispo de Hipona, a humildade torna-se o
segredo da unidade cada vez maior com Deus, e tudo isto é bem simbolizado pela
figura de São João Batista, aquele de quem Cristo disse que não existe ninguém
maior que ele, entre os nascidos de mulher [Lc 7,28], é um modelo de humildade
precisamente porque ‘dá testemunho daquele que é mais do que um homem’ [Sermão
289,5], aliás porque ele é somente o ‘serviço da voz que grita a Cristo, o
único que é a Palavra [Sermão 288,5].
“Portanto, quem é este homem, quem é João Batista?”
– interrogou-se o papa Bento XVI, na homilia do 11 de dezembro de 2011:
A sua resposta é
de uma humildade surpreendente. Não é o Messias, não é a luz. Não é Elias que
voltou à terra, nem o grande profeta esperado. É o percussor, simples
testemunha, totalmente subordinado Àquele que anuncia; uma voz no deserto, como
também hoje no deserto das grandes cidades deste mundo, de grande ausência de
Deus, precisamos de vozes que simplesmente nos anunciem: “Deus existe, está
sempre próximo, embora pareça ausente”. É uma voz no deserto e é uma testemunha
da luz; e isto toca-nos no coração, porque neste mundo com tantas trevas, com
tantas escuridões, todos somos chamados a ser testemunhas da luz [Bento XVI – audiências
públicas].
Se Santo Agostinho regressa muitas vezes ao paradoxo
da humildade, em muitas partes da sua extensa obra, São Tomás, pelo contrário,
dedica uma seção inteira da sua obra prima a esta estranha virtude (entre
outras coisas, Santo Agostinho é um dos Padres da Igreja mais citados pelo
autor da Suma, como também o demostra a seção II-II, q. 161, dedicada à humildade).
Com o seu inconfundível estilo calmo e nítido, o
Aquinate avança ,passo a passo, achegando-se à humildade e com progressivas
aproximações, avançando por teses e antíteses, e enfrentando seis argumentos:
-
Se a humildade é uma virtude;
-
Se consiste na volição ou no juízo da razão;
-
Se por humildade devemos pôr-nos abaixo de todos;
-
Se a humildade está entre as partes da modéstia e, portanto, da temperança;
-
Como se relaciona com as outras virtudes;
-
Os graus da humildade.
Primeiro ponto: já aludimos a ele; esta questão é
posta precisamente porque “parece que a humildade não é uma virtude”. A favor
dessa tese, São Tomás afirma, entre outras coisas, que “uma virtude nunca é incompatível
com outras virtudes. Ao contrário, a humildade contrapõe-se à virtude da
magnanimidade que tende para as coisas grandes, de que a humildade foge.
Portanto, a humildade não é uma virtude”, e acrescenta que, “segundo Aristóteles,
a virtude é uma disposição de um ser perfeito. A humildade, pelo contrário, é
próprio de quem é imperfeito; de fato, não condiz com Deus, nem a humilhação
nem a submissão aos outros. Por isso, a humildade não é uma virtude”. Contra
essa tesa, São Tomás cita, antes de tudo, a autoridade de Orígenes que, por sua
vez, cita duas passagens do evangelho: “Orígenes, ao comentar as palavras da
Virgem, ‘olhou para a humildade está expressamente inserida entre as virtudes,
já que o Salvador disse: aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’”.
Depois, volta-se para Santo Isidoro e para as suas etimologias,
segundo as quais,
Umile suona humi
acclinis (que jaz na terra), ou seja, aderente às coisas baixas. Mas isto pode
acontecer de dois modos: primeiro, por causa extrínseca: como quando alguém é
atirado ao chão por outra pessoa. E, então, a humildade é um sofrimento. Segundo
por um principio intrínseco. E isto pode ser um bem, se alguém, ao considerar a
sua miséria, se baixa até os limites de seu grau; como fez Abraão, quando disse
ao Senhor: “Pois que me atrevi a falar ao meu Senhor, eu que sou apenas cinza e
pó, continuarei”. Nesse caso a humildade é uma virtude. Mas, às vezes, pode ser
um mal: como quando o homem, menosprezado em sua honra, equipara-se aos burros
de carga irracionais e torna-se semelhante a eles [Suma Teológica seção II-II,
q. 161].
Em suma, para todos os feitos, a humildade é uma
virtude, construída essencialmente na reverência de Deus, desde que esse
abaixamento seja verdadeiro e não falso:
Como já
dissemos, enquanto virtude, a humildade implica um abaixamento louvável de si
mesmo. Mas, as vezes, isso só se faz com os sinais externos, por fingimento. Mas
esta é uma falsa humildade que, no dizer de Santo Agostinho, “é uma grande
soberba”, porque aspira a glória. Outras vezes, pelo contrário isto faz-se por
uma convicção profunda da alma. E é precisamente por isso que a humildade é uma
virtude: dado que a virtude não consiste nos atos externos, mas consiste
principalmente nas deliberações da alma, como diz Aristóteles [Suma Teológica
seção II-II, q. 161].
Superado o escolho de se saber se a humildade é ou
não uma virtude, o Aquinate interroga-se se ela não estará entre as maiores
virtudes, porque de um lado, Santo Agostinho sublinha algumas vezes que ela é o
fundamento de todas as outras virtudes e, do outro, o mesmo padre da Igreja
afirma que “a humildade constitui quase todo o ensinamento de Cristo”.
Trata-se de um ponto muito importante: falar da
humildade não é discutir se uma atitude superficial dos homens, mas, para o
cristão, quer dizer penetrar no coração do mistério de Deus. Orígenes acertou o
alvo, quando citou a passagem de Mateus 11,29: “Aprendei de mim, porque sou
manso e humilde de coração.” Como alguns séculos mais tarde haveria de dizes
mestre Eckhart: “A virtude que tem nome de humildade está ramificada nas
profundezas da divindade”. A humildade de cada homem, mesmo de um papa, consiste
antes de tudo, como fonte e modelo, na humildade de Deus bíblico, criador e
redentor.
Falaremos disso mais adiante; mas, antes, vejamos o
perfil da humildade tal como emerge da reconstrução da Suma Teológica.
Por isso, a humildade é uma virtude e está entre as
mais importantes, embora não seja a principal, nem seja uma virtude teologal
(como a fé, a esperança e a caridade, dons diretos de Deus). A importância da
humildade é paradoxalmente primaria, precisamente porque desempenha uma função “ancilar”.
A humildade é uma virtude humilde. Aqui o adjetivo exprime pelo menos dois
significados:
- a humildade é
humilde porque é “instrumental”, “serve” as outras virtudes; não é uma virtude
que tenha “alguma coisa de seu”, mais é funcional na remoção de obstáculos,
como a soberba, que impede os homens de receber as virtudes principais (as teologais,
dom de Deus);
- a humildade é
humilde porque jaz por terra, deitada no chão, no sentido de que a humildade
põe-se exatamente debaixo da terra, onde se encontram os fundamentos, quer
dizer, é sobre a humildade que o homem pode construir a sua vida boa e
virtuosa.
Talvez a linguagem linear da Suma Teológica seja
mais eficaz do que qualquer uma das minhas paráfrases:
Assim como a
ordenada agregação das virtudes é comparada a um edifício, assim também a primeira
virtude que se requer na aquisição delas deve prepara-se aos fundamentos. Ora,
as verdadeiras virtudes são infundidas por Deus. Por isso, de dois modos pode
entender-se que uma virtude é a primeira na aquisição das outras. Primeiro,
como remoção de obstáculos. E nesse sentido, a humildade está no primeiro lugar,
enquanto expulsa a soberba, à qual Deus resiste, e torna o homem submisso e
aberto a conhecer a infusão da graça divina, removendo os obstáculos as soberba,
removendo o obstáculo da soberba, segundo as palavras de São Tiago: “Deus
resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes”. Nesse sentido, a
humildade é o fundamento do edifício espiritual. [...] Cristo recomendou-nos a
humildade mais do que qualquer outra coisa porque, sobretudo, com ela
retiram-se os obstáculos da salvação humana que consiste em tender para as
coisas celestes e espirituais, de que o homem é desviado quando atende às
grandezas terrenas. Por isso, para afastar os obstáculos da salvação o Senhor
ensinou-nos com seu exemplos de humildade, a desprezar a grandeza mundana. E assim,
a humildade é uma predisposição do homem para obter livre acesso aos bens
espirituais e divinos. Mas, assim como a perfeição é superior à predisposição
correlativa, assim também a caridade e as outras virtudes, que põem o homem em
contato com Deus, são superiores à humildade [Suma Teológica seção II-II, q.
161].
E, no entanto, a humildade está intimamente ligada a
Deus, porque a “humildade implica sobretudo a submissão do homem de Deus. Eis porque
Santo Agostinho atribuiu a humildade que, segundo ele, corresponde à pobreza em
espírito, ao dom do temos, que inspira a reverencia a Deus”.
Para concluir, São Tomás recorda que “a humildade,
como todas as outras virtudes, atua sobretudo na alma, e recapitulando:
A humildade
consiste essencialmente nos atos da vontade, com os quais se travam os impulsos
desordenados do seu ânimo em direção às coisas grandes, contudo, ela tem a sua
regra na consciência, de modo que ninguém se julgue mais do que aquilo que é. Principio
e raiz destes atos (da vontade e da razão) é a reverencia que se tem para com
Deus. Finalmente, da atitude interior da humildade derivam sinais externos,
palavras, ações e gestos que manifestam o interior, como acontece com as outras
virtudes: dado que, como diz a Escritura, “o homem sensato conhece-se pelo
aspecto e pelo modo de apresentar-se” [Suma Teológica seção II-II, q. 161].
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