sexta-feira, 20 de março de 2015

SOBRE A HUMILDADE


Sobre a humildade
Uma falsa humildade é grande soberba, porque aspira à gloria [Santo Agostinho].
A humildade evita que a agarrem a compreendam. É como um poço sem fundo, nunca mais acaba de tornar-se humilde. Há poucos estudos dedicados a esta virtude; nesta investigação, além da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, na parte dedicada ao tema da humildade, servirmo-nos-emos também do bom ensaio escrito, em 1974, pelo jesuíta François Varillon, L’umiltà di Dio, que nos recorda o paradoxo dessa virtude que deve ser estudada com a devida e humilde gradação:
Só Deus é humilde. O homem não é, a não ser na medida que reconhece a sua impotência em sê-lo. Aqui, deve-se avançar passo a passo. [...] Enquanto estivermos a caminho na terra, a humildade, sempre procurada como necessária, deve ser considerada um limite inacessível. [...] Só Deus, ao revelar-nos a nossa incapacidade de sermos humildes, nos torna humildes. A vitória da humanidade só pode ser o seu fracasso [François Varillon, L’umiltà di Dio].
Avançando passo a passo, atentos às voltas e revoltas da humildade-enguia, vemos agora o que nos dizem as duas autoridades máximas do pensamento cristão, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, sabendo aliás como se sabe que Joseph Ratzinger foi e é um grande admirador do primeiro, mas “passional” do que do segundo, considerado mais frio (neste sentido, impressiona a confidencia de Bento XVI a Peter Seewald, no livro entrevista luz do mundo, quando associa São Tomás de Aquino a Santo Agostinho e São Boaventura, no circulo dos seus grandes e santos amigos, a quem se dirige nas suas orações cotidianas.
Santo Agostinho fala de várias obras da humildade, especialmente nos seus sermões, uma virtude que para ele, é paradoxal porque, na humildade, a descida coincide com a subida e o abaixamento com a verdadeira evolução, pelo que “o coração grande só pode encher-se na humildade: de fato, só ela se orienta para o altíssimo” [De Civitate Dei XIV].
Para o Bispo de Hipona, a humildade torna-se o segredo da unidade cada vez maior com Deus, e tudo isto é bem simbolizado pela figura de São João Batista, aquele de quem Cristo disse que não existe ninguém maior que ele, entre os nascidos de mulher [Lc 7,28], é um modelo de humildade precisamente porque ‘dá testemunho daquele que é mais do que um homem’ [Sermão 289,5], aliás porque ele é somente o ‘serviço da voz que grita a Cristo, o único que é a Palavra [Sermão 288,5].
“Portanto, quem é este homem, quem é João Batista?” – interrogou-se o papa Bento XVI, na homilia do 11 de dezembro de 2011:
A sua resposta é de uma humildade surpreendente. Não é o Messias, não é a luz. Não é Elias que voltou à terra, nem o grande profeta esperado. É o percussor, simples testemunha, totalmente subordinado Àquele que anuncia; uma voz no deserto, como também hoje no deserto das grandes cidades deste mundo, de grande ausência de Deus, precisamos de vozes que simplesmente nos anunciem: “Deus existe, está sempre próximo, embora pareça ausente”. É uma voz no deserto e é uma testemunha da luz; e isto toca-nos no coração, porque neste mundo com tantas trevas, com tantas escuridões, todos somos chamados a ser testemunhas da luz [Bento XVI – audiências públicas].
Se Santo Agostinho regressa muitas vezes ao paradoxo da humildade, em muitas partes da sua extensa obra, São Tomás, pelo contrário, dedica uma seção inteira da sua obra prima a esta estranha virtude (entre outras coisas, Santo Agostinho é um dos Padres da Igreja mais citados pelo autor da Suma, como também o demostra a seção II-II, q. 161, dedicada à humildade).
Com o seu inconfundível estilo calmo e nítido, o Aquinate avança ,passo a passo, achegando-se à humildade e com progressivas aproximações, avançando por teses e antíteses, e enfrentando seis argumentos:
- Se a humildade é uma virtude;
- Se consiste na volição ou no juízo da razão;
- Se por humildade devemos pôr-nos abaixo de todos;
- Se a humildade está entre as partes da modéstia e, portanto, da temperança;
- Como se relaciona com as outras virtudes;
- Os graus da humildade.
Primeiro ponto: já aludimos a ele; esta questão é posta precisamente porque “parece que a humildade não é uma virtude”. A favor dessa tese, São Tomás afirma, entre outras coisas, que “uma virtude nunca é incompatível com outras virtudes. Ao contrário, a humildade contrapõe-se à virtude da magnanimidade que tende para as coisas grandes, de que a humildade foge. Portanto, a humildade não é uma virtude”, e acrescenta que, “segundo Aristóteles, a virtude é uma disposição de um ser perfeito. A humildade, pelo contrário, é próprio de quem é imperfeito; de fato, não condiz com Deus, nem a humilhação nem a submissão aos outros. Por isso, a humildade não é uma virtude”. Contra essa tesa, São Tomás cita, antes de tudo, a autoridade de Orígenes que, por sua vez, cita duas passagens do evangelho: “Orígenes, ao comentar as palavras da Virgem, ‘olhou para a humildade está expressamente inserida entre as virtudes, já que o Salvador disse: aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’”.     
Depois, volta-se para Santo Isidoro e para as suas etimologias, segundo as quais,
Umile suona humi acclinis (que jaz na terra), ou seja, aderente às coisas baixas. Mas isto pode acontecer de dois modos: primeiro, por causa extrínseca: como quando alguém é atirado ao chão por outra pessoa. E, então, a humildade é um sofrimento. Segundo por um principio intrínseco. E isto pode ser um bem, se alguém, ao considerar a sua miséria, se baixa até os limites de seu grau; como fez Abraão, quando disse ao Senhor: “Pois que me atrevi a falar ao meu Senhor, eu que sou apenas cinza e pó, continuarei”. Nesse caso a humildade é uma virtude. Mas, às vezes, pode ser um mal: como quando o homem, menosprezado em sua honra, equipara-se aos burros de carga irracionais e torna-se semelhante a eles [Suma Teológica seção II-II, q. 161].
Em suma, para todos os feitos, a humildade é uma virtude, construída essencialmente na reverência de Deus, desde que esse abaixamento seja verdadeiro e não falso:
Como já dissemos, enquanto virtude, a humildade implica um abaixamento louvável de si mesmo. Mas, as vezes, isso só se faz com os sinais externos, por fingimento. Mas esta é uma falsa humildade que, no dizer de Santo Agostinho, “é uma grande soberba”, porque aspira a glória. Outras vezes, pelo contrário isto faz-se por uma convicção profunda da alma. E é precisamente por isso que a humildade é uma virtude: dado que a virtude não consiste nos atos externos, mas consiste principalmente nas deliberações da alma, como diz Aristóteles [Suma Teológica seção II-II, q. 161].
Superado o escolho de se saber se a humildade é ou não uma virtude, o Aquinate interroga-se se ela não estará entre as maiores virtudes, porque de um lado, Santo Agostinho sublinha algumas vezes que ela é o fundamento de todas as outras virtudes e, do outro, o mesmo padre da Igreja afirma que “a humildade constitui quase todo o ensinamento de Cristo”.
Trata-se de um ponto muito importante: falar da humildade não é discutir se uma atitude superficial dos homens, mas, para o cristão, quer dizer penetrar no coração do mistério de Deus. Orígenes acertou o alvo, quando citou a passagem de Mateus 11,29: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração.” Como alguns séculos mais tarde haveria de dizes mestre Eckhart: “A virtude que tem nome de humildade está ramificada nas profundezas da divindade”. A humildade de cada homem, mesmo de um papa, consiste antes de tudo, como fonte e modelo, na humildade de Deus bíblico, criador e redentor.
Falaremos disso mais adiante; mas, antes, vejamos o perfil da humildade tal como emerge da reconstrução da Suma Teológica.
Por isso, a humildade é uma virtude e está entre as mais importantes, embora não seja a principal, nem seja uma virtude teologal (como a fé, a esperança e a caridade, dons diretos de Deus). A importância da humildade é paradoxalmente primaria, precisamente porque desempenha uma função “ancilar”. A humildade é uma virtude humilde. Aqui o adjetivo exprime pelo menos dois significados:
- a humildade é humilde porque é “instrumental”, “serve” as outras virtudes; não é uma virtude que tenha “alguma coisa de seu”, mais é funcional na remoção de obstáculos, como a soberba, que impede os homens de receber as virtudes principais (as teologais, dom de Deus);
- a humildade é humilde porque jaz por terra, deitada no chão, no sentido de que a humildade põe-se exatamente debaixo da terra, onde se encontram os fundamentos, quer dizer, é sobre a humildade que o homem pode construir a sua vida boa e virtuosa.
Talvez a linguagem linear da Suma Teológica seja mais eficaz do que qualquer uma das minhas paráfrases:
Assim como a ordenada agregação das virtudes é comparada a um edifício, assim também a primeira virtude que se requer na aquisição delas deve prepara-se aos fundamentos. Ora, as verdadeiras virtudes são infundidas por Deus. Por isso, de dois modos pode entender-se que uma virtude é a primeira na aquisição das outras. Primeiro, como remoção de obstáculos. E nesse sentido, a humildade está no primeiro lugar, enquanto expulsa a soberba, à qual Deus resiste, e torna o homem submisso e aberto a conhecer a infusão da graça divina, removendo os obstáculos as soberba, removendo o obstáculo da soberba, segundo as palavras de São Tiago: “Deus resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes”. Nesse sentido, a humildade é o fundamento do edifício espiritual. [...] Cristo recomendou-nos a humildade mais do que qualquer outra coisa porque, sobretudo, com ela retiram-se os obstáculos da salvação humana que consiste em tender para as coisas celestes e espirituais, de que o homem é desviado quando atende às grandezas terrenas. Por isso, para afastar os obstáculos da salvação o Senhor ensinou-nos com seu exemplos de humildade, a desprezar a grandeza mundana. E assim, a humildade é uma predisposição do homem para obter livre acesso aos bens espirituais e divinos. Mas, assim como a perfeição é superior à predisposição correlativa, assim também a caridade e as outras virtudes, que põem o homem em contato com Deus, são superiores à humildade [Suma Teológica seção II-II, q. 161].
E, no entanto, a humildade está intimamente ligada a Deus, porque a “humildade implica sobretudo a submissão do homem de Deus. Eis porque Santo Agostinho atribuiu a humildade que, segundo ele, corresponde à pobreza em espírito, ao dom do temos, que inspira a reverencia a Deus”.
Para concluir, São Tomás recorda que “a humildade, como todas as outras virtudes, atua sobretudo na alma, e recapitulando:
A humildade consiste essencialmente nos atos da vontade, com os quais se travam os impulsos desordenados do seu ânimo em direção às coisas grandes, contudo, ela tem a sua regra na consciência, de modo que ninguém se julgue mais do que aquilo que é. Principio e raiz destes atos (da vontade e da razão) é a reverencia que se tem para com Deus. Finalmente, da atitude interior da humildade derivam sinais externos, palavras, ações e gestos que manifestam o interior, como acontece com as outras virtudes: dado que, como diz a Escritura, “o homem sensato conhece-se pelo aspecto e pelo modo de apresentar-se” [Suma Teológica seção II-II, q. 161].   

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