Diocese de Tianguá
Paróquia Nossa Senhora das Dores
Misericordiae
Vultus
Bula
de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia – Documentos
Pontifícios – 20
Jesus
Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece
encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva,
visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, “rico em
misericórdia” (Ef 2, 4), depois de ter revelado o seu nome a Moisés como “Deus
misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade”
(Ex34, 6), não cessou de dar a conhecer, de vários modos e em muitos momentos
da história, a sua natureza divina. Na “plenitude do tempo” (Gl 4, 4), quando
tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido
da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem O vê,
vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa,
Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus.
Precisamos
sempre de contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade
e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o
mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo
qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no
coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no
caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos
abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do
nosso pecado.
Há
momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar
na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi
por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável
para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.
O
Ano Santo abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada
Conceição. Esta festa litúrgica indica o modo de agir de Deus desde os
primórdios da nossa história. Depois do pecado de Adão e Eva, Deus não quis
deixar a humanidade sozinha e à mercê do mal. Por isso, pensou e quis Maria
santa e imaculada no amor (cf. Ef 1, 4), para que Se tornasse a Mãe do Redentor
do homem. Perante a gravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do
perdão. A misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado, e ninguém pode
colocar um limite ao amor de Deus que perdoa. Na festa da Imaculada Conceição,
terei a alegria de abrir a Porta Santa. Será então uma Porta da Misericórdia,
onde qualquer pessoa que entre poderá experimentar o amor de Deus que consola,
perdoa e dá esperança.
Escolhi
a data de 8 de Dezembro, porque é cheia de significado na história recente da
Igreja. Com efeito, abrirei a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do
Concílio Ecuménico Vaticano II. Os Padres, reunidos no Concílio, tinham sentido
forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos
homens do seu tempo de modo mais compreensível. Derrubadas as muralhas que, por
demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara
o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova.
Voltam
à mente aquelas palavras, cheias de significado, que São João XXIII pronunciou
na abertura do Concílio para indicar a senda a seguir: “Nos nossos dias, a
Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da
severidade. (…) A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecuménico
o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna,
paciente, cheia de misericórdia e bondade com os filhos dela separados”.
O
Ano Jubilar terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo,
20 de Novembro de 2016. Naquele dia, ao fechar a Porta Santa, animarnos-ão,
antes de tudo, sentimentos de gratidão e agradecimento à Santíssima Trindade
por nos ter concedido este tempo extraordinário de graça.
“É
próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a
sua omnipotência”. Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram como a
misericórdia divina não seja, de modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a
qualidade da omnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas
coletas mais antigas, convida a rezar assim: “Senhor, que dais a maior prova do
vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis…” Deus permanecerá para sempre na
história da humanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo,
providente, santo e misericordioso. “Paciente e misericordioso” é o binómio que
aparece, frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a natureza de
Deus. O fato de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto em muitas ações
da história da salvação, onde a sua bondade prevalece sobre o castigo e a
destruição. Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir
divino: “É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É
Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e ternura” (103/102,
3-4). E outro Salmo atesta, de forma ainda mais explícita, os sinais concretos
da misericórdia: “O Senhor liberta os prisioneiros. O Senhor dá vista aos
cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama o homem justo. O Senhor
protege os que vivem em terra estranha e ampara o órfão e a viúva, mas entrava
o caminho aos pecadores” (146/145, 7-9). E, para terminar, aqui estão outras
expressões do Salmista: “[O Senhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes
as feridas. (...) O Senhor ampara os humildes, mas abate os malfeitores até ao
chão” (147/146, 3.6). Em suma, a misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata
mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e
de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas
vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor “visceral”.
Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e
compaixão, de indulgência e perdão. “Eterna é a sua misericórdia”: tal é o
refrão que aparece em cada versículo do Salmo 136, ao mesmo tempo que se narra
a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os
acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico
profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da
salvação. O fato de repetir continuamente “eterna é a sua misericórdia”, como
faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para inserir
tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o homem, não
só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar
misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha querido
inserir este Salmo – o “grande hallel”, como lhe chamam – nas festas litúrgicas
mais importantes. Antes da Paixão, Jesus rezou ao Pai com este Salmo da
misericórdia. Assim o atesta o evangelista Mateus quando afirma que “depois de
cantarem os salmos” (26, 30), Jesus e os discípulos saíram para o Monte das
Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d’Ele e da
sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este ato supremo da Revelação sob a
luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão
e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz. O facto
de saber que o próprio Jesus rezou com este Salmo torna-o, para nós cristãos,
ainda mais importante e compromete-nos a assumir o refrão na nossa oração de
louvor diária: “eterna é a sua misericórdia”.
Vendo
que a multidão de pessoas que O seguia estava cansada e abatida, Jesus sentiu,
no fundo do coração, uma intensa compaixão por elas (cf. Mt 9, 36). Em virtude
deste amor compassivo, curou os doentes que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14,
14) e, com poucos pães e peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em
todas as circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a
qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades
mais autênticas que tinham. A própria vocação de Mateus se insere no horizonte
da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos impostos, os olhos de
Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar cheio de misericórdia que perdoava
os pecados daquele homem e, vencendo as resistências dos outros discípulos,
escolheu-o, a ele pecador e publicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o
Venerável, ao comentar esta cena do Evangelho, escreveu que Jesus olhou Mateus
com amor misericordioso e escolheu-o:
Nas
parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum
Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada
a recusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em
especial: as da ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus
dois filhos (cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre
cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do
Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que
tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão. Temos depois outra
parábola da qual tiramos uma lição para o nosso estilo de vida cristã.
Interpelado pela pergunta de Pedro sobre quantas vezes fosse necessário
perdoar, Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes
sete” (Mt18, 22) e contou a parábola do “servo sem compaixão”. Este, convidado pelo
senhor a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o senhor
perdoa-lhe a dívida. Mas, imediatamente depois, encontra outro servo como ele,
que lhe devia poucos centésimos; este suplica-lhe de joelhos que tenha piedade,
mas aquele recusa-se e fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido do
facto, zanga-se muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: “Não devias também
ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?” (Mt 18, 33). E Jesus
concluiu: “Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não
perdoar ao seu irmão do íntimo do coração” (Mt 18, 35). A parábola contém um
ensinamento profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia não
é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os
seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia,
porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco.
Na
Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o
agir de Deus para conosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna o
visível e palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstrata. Por
sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que
se verificam na atividade de todos os dias.
A
arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação
pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no
anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de
misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor
misericordioso e compassivo.
Talvez,
demasiado tempo, nós tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da
misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez
esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a
Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e
significativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na
nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra
parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida
infecunda e estéril, como se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo,
para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de
regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos
irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem
para olhar o futuro com esperança.
Queremos
viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o
Pai. O evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: “Sede
misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 36). É um programa
de vida tão empenhativo como rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é
dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes
de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso
significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a Palavra que nos é
dirigida. Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la
como próprio estilo de vida.
Misericordiosos
como o Pai é, pois, o “lema” do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de
como Deus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir
nada em troca. Vem em nosso auxílio, quando O invocamos. É significativo que a
oração diária da Igreja comece com estas palavras: “Deus, vinde em nosso
auxílio! Senhor, socorrei-nos e salvai-nos” (Sal70/69, 2). O auxílio que
invocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para conosco. Ele vem
para nos salvar da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d’Ele
consiste em fazer-nos sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia,
tocados pela sua compaixão, podemos também nós tornar-nos compassivos para com
todos.
No
Evangelho de Lucas, encontramos outro aspecto importante para viver, com fé, o
Jubileu. Conta o evangelista que Jesus voltou a Nazaré e ao sábado, como era
seu costume, entrou na sinagoga. Chamaram-No para ler a Escritura e comentá-la.
A passagem era aquela do profeta Isaías onde está escrito: “O espírito do
Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a
boa nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação
aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano de
misericórdia do Senhor” (61,1-2). “Um ano de misericórdia”’: isto é o que o
Senhor anuncia e que nós desejamos viver. Este Ano Santo traz consigo a riqueza
da missão de Jesus que ressoa nas palavras do Profeta: levar uma palavra e um
gesto de consolação aos pobres, anunciar a libertação a quantos são
prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea, devolver a vista
a quem já não consegue ver porque vive curvado sobre si mesmo, e restituir
dignidade àqueles que dela se viram privados. A pregação de Jesus torna-se
novamente visível nas respostas de fé que o testemunho dos cristãos é chamado a
dar. Acompanhem-nos as palavras do Apóstolo: “Quem pratica a misericórdia,
faça-o com alegria” (Rm 12, 8). 17. A Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida
mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia
de Deus. Quantas páginas da Sagrada Escritura se podem meditar, nas semanas da
Quaresma, para redescobrir o rosto misericordioso do Pai! Com as palavras do
profeta Miqueias, podemos também nós repetir: Vós, Senhor, sois um Deus que
tira a iniquidade e perdoa o pecado, que não Se obstina na ira mas Se compraz
em usar de misericórdia. Vós, Senhor, voltareis para nós e tereis compaixão do
vosso povo. Apagareis as nossas iniquidades e lançareis ao fundo do mar todos
os nossos pecados (cf. 7, 18-19). As páginas do profeta Isaías poderão ser
meditadas, de forma mais concreta, neste tempo de oração, jejum e caridade. “O
jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente,
livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar
toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo
aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão.
Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a
cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e a glória do Senhor atrás de
ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá, pedirás auxílio e te dirá:
“Aqui estou!” Se retirares da tua vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o
falar ofensivo, se repartires o teu pão com o faminto e matares a fome ao
pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as tuas trevas tornar-se-ão como o
meio-dia. O Senhor te guiará constantemente, saciará a tua alma no árido
deserto, dará vigor aos teus ossos. Serás como um jardim bem regado, como uma
fonte de águas inesgotáveis” (58, 6-11).
Neste
contexto, não será inútil recordar a relação entre justiça e misericórdia. Não
são dois aspectos em contraste entre si, mas duas dimensões duma única
realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude
do amor. A justiça é um conceito fundamental para a sociedade civil,
normalmente quando se faz referimento a uma ordem jurídica através da qual se
aplica a lei. Por justiça entende-se também que a cada um deve ser dado o que
lhe é devido. Na Bíblia, alude-se muitas vezes à justiça divina, e a Deus como
juiz. Habitualmente é entendida como a observância integral da Lei e o
comportamento de todo o bom judeu conforme aos mandamentos dados por Deus. Esta
visão, porém, levou não poucas vezes a cair no legalismo, mistificando o
sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui. Para
superar a perspectiva legalista, seria preciso lembrar que, na Sagrada
Escritura, a justiça é concebida essencialmente como um abandonar-se confiante
à vontade de Deus. Por sua vez, Jesus fala mais vezes da importância da fé que
da observância da lei. É neste sentido que devemos compreender as suas
palavras, quando, encontrando-Se à mesa com Mateus e outros publicanos e
pecadores, disse aos fariseus que O acusavam por isso mesmo: « Ide aprender o
que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar
os justos, mas os pecadores » (Mt 9, 13). Diante da visão duma justiça como
mera observância da lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores,
Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores para
lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus, por causa desta
sua visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha sido rejeitado pelos
fariseus e os doutores da lei. Estes, para ser fiéis à lei, limitavam-se a
colocar pesos sobre os ombros das pessoas, anulando porém a misericórdia do
Pai. O apelo à observância da lei não pode obstaculizar a atenção às necessidades
que afetam a dignidade das pessoas. A propósito, é muito significativo o apelo
que Jesus faz ao texto do profeta Oseias: « Eu quero a misericórdia e não os
sacrifícios » (6, 6). Jesus afirma que, a partir de agora, a regra de vida dos
seus discípulos deverá ser aquela que prevê o primado da misericórdia, como Ele
mesmo dá testemunho partilhando a refeição com os pecadores. A misericórdia
revela-se, mais uma vez, como dimensão fundamental da missão de Jesus. É um
verdadeiro desafio posto aos seus interlocutores, que se contentavam com o
respeito formal da lei. Jesus, pelo contrário, vai além da lei, a sua partilha
da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permite compreender até
onde chega a sua misericórdia.
A
misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus
para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender,
converter e acreditar. A experiência do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos
a superação da justiça na linha da misericórdia. A época em que viveu este
profeta conta-se entre as mais dramáticas da história do povo judeu. O Reino
está próximo da destruição; o povo não permaneceu fiel à aliança, afastou-se de
Deus e perdeu a fé dos pais. Segundo uma lógica humana, é justo que Deus pense
em rejeitar o povo infiel: não observou o pacto estipulado e, consequentemente,
merece a devida pena, ou seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta:
« Não voltará para o Egito, mas a Assíria será o seu rei, porque recusaram
converter-se » (Os 11, 5). E todavia, depois desta reação que faz apelo à
justiça, o profeta muda radicalmente a sua linguagem e revela o verdadeiro
rosto de Deus: « O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas
entranhas. Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir
Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não me
deixo levar pela ira » (11, 8-9). Santo Agostinho, de certo modo comentando as
palavras do profeta, diz: « É mais fácil que Deus contenha a ira do que a
misericórdia ». É mesmo assim! A ira de Deus dura um instante, ao passo que a
sua misericórdia é eterna.
Será,
portanto, um Ano Santo extraordinário para viver, na existência de cada dia, a
misericórdia que o Pai, desde sempre, estende sobre nós. Neste Jubileu,
deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do
seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar conosco a sua vida. A
Igreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A sua
vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu convicto anúncio.
Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia de
grandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a todos no grande
mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é
chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia,
professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo. Do
coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui
incessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca poderá
esgotar-se, por maior que seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempre
que alguém tiver necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus
não tem fim. Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tanto
é inesgotável a riqueza que dela provém. Neste Ano Jubilar, que a Igreja se
faça eco da Palavra de Deus que ressoa, forte e convincente, como uma palavra e
um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer
misericórdia e seja sempre paciente a confortar e perdoar. Que a Igreja se faça
voz de cada homem e mulher e repita com confiança e sem cessar: « Lembra-te,
Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois eles existem desde sempre » (Sl
25/24, 6).
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de
Páscoa ou da Divina Misericórdia – do Ano do Senhor de 2015, o terceiro de
pontificado.
Francisco